segunda-feira, 26 de julho de 2010

A Inquisição Medieval e a Inquisição Espanhola - Por Luana Martins Golin

Para entender o pensamento da Inquisição, o conceito de heresia torna-se o ponto de partida. “A palavra herege origina-se do grego hairesis e do latim haeresis e significa ruptura e divisão”[1]. A heresia representa uma ruptura com os valores e ordens estabelecidas, portanto constitui em ameaça e perigo para a doutrina oficial, por este motivo o herege é perseguido.
Nos primeiros séculos da era cristã, os hereges eram punidos com a excomunhão, revelando uma punição intra-eclesial. Com Constantino e a adesão do cristianismo como religião oficial do império, a partir do 4º século, a heresia deixou de ser uma questão apenas intra-eclesial e passou a ser uma questão política, extra-eclesial. Qualquer doutrina divergente do cristianismo oficial tornou-se fator de risco à unidade política. A punição deixou de ser somente a excomunhão e passou a ser também o confisco dos bens e a condenação à morte dos hereges.
Na Espanha, a formação cultural e religiosa foi composta de cristãos, judeus e muçulmanos. A partir do século XV, iniciou-se um período de intolerância em relação aos judeus daquele país, que culminou na criação de O Tribunal do Santo Ofício da Inquisição, em 1480. Este tribunal foi inspirado na Inquisição Medieval. É preciso saber que existem diferenças entre a Inquisição que ocorreu na Idade Média e a Inquisição Moderna, que incluía a Inquisição Espanhola e a Portuguesa, a partir do século XV.
A Inquisição Medieval surgiu porque a Igreja e o papado sentiram-se ameaçados em seu poder. Sua luta foi contra os que questionavam a infalibilidade da Igreja e do papa. Durante a Idade Média, foram organizadas cruzadas contra os hereges. O alvo da Inquisição Medieval foram os hereges cristãos que se concentraram na França e na Itália, além das cruzadas contra os muçulmanos. A Inquisição Medieval foi idealizada e dominada pelo papa, mas contava com o auxílio e a aprovação dos reis em todos os países em que atuou.
No século XIII, os bispos de cada localidade eram os responsáveis por identificar, julgar e punir os hereges. Entretanto, aqueles se mostraram ineficazes. Por este motivo, Roma começou enviar inquisidores papais itinerantes, geralmente dominicanos. A recruta de inquisidores entre a ordem dos dominicanos se deu devido a sua rigorosa formação teológica, pois eram tomistas e também pelo fato de serem mendicantes supostamente desapegados de interesses materiais.
A Inquisição Espanhola não foi um instrumento do papado, pois tinha que prestar contas diretamente aos reis da Espanha, ou seja, a um potentado secular. Nos séculos anteriores ao século XV, a Espanha não estava unificada. Foi através do casamento de Fernando, rei de Aragão, e Isabel, rainha de Castela, ambos católicos, que ocorreu a unificação espanhola, a partir de 1479. Entretanto, Granada, a região islâmica da Espanha, só foi vencida em 1492, marcando assim o triunfo católico. Sob o comando de Fernando e Isabel, a Espanha não
ia só ser unida, ia simultaneamente ser ‘expurgada’ de islamismo e judaísmo, além de paganismos e heresias cristãs. Para isso, os monarcas espanhóis estabeleceram sua própria inquisição. [...] Como os domínios dos monarcas espanhóis compreendiam uma espécie de teocracia, com a Igreja e o Estado atuando conjugados, a Inquisição espanhola era tanto um adjunto da Coroa quanto da Igreja. Funcionava como um instrumento não só da ortodoxia eclesiástica, mas também de política real.[2]
A Inquisição Espanhola prestava contas à Coroa e recebeu apoio da Igreja: “foi estabelecida com a autorização do papa, mas seu idealizador foi o rei, com o objetivo principal não de resolver um problema aparentemente religioso, mas social”[3]. A Inquisição Espanhola apoiou os interesses da coroa, da nobreza e do clero. O alvo primário desta segunda inquisição foi a população judaica da Península Ibérica.
É importante notar que havia interesses políticos dos reis espanhóis em estabelecer a Inquisição, pois essa se tornou um meio eficiente para a centralização do poder, além de uma prática lucrativa, pois o confisco dos bens dos acusados, principalmente dos judeus, eram revertidos para o Estado e para a Igreja. O dinheiro do fisco financiou a guerra contra os mouros de Granada. O dinheiro arrecadado das multas cobradas na Inquisição era empregado na manutenção dos prisioneiros e dos inquisidores. Os inquisidores espanhóis eram pagos pelo Tesouro Público.            Porém, por detrás dos interesses político, econômico e social da Inquisição, havia uma massa de fiéis e leigos temerosos, submissos e obedientes.
O Tribunal da Inquisição na Espanha foi criado para extirpar os conversos ou cristãos novos, ou seja, os judeus espanhóis convertidos ao catolicismo.
Andaluzia era um dos centros mais populosos de conversos e a Inquisição começou seu trabalho em Sevilha [...]. Entre os anos de 1481 a 1488 mais de setecentos conversos foram queimados vivos e mais cinco mil foram presos e penitenciados. [...] Em 1483, Tomás de Torquemada foi nomeado inquisidor geral.[4]
A partir de 1483, todos os tribunais da Inquisição, na Espanha cristã, tiveram como inquisidor geral Tomás de Torquemada. O inquisidor geral, ou grande inquisidor, era a função correspondente ao presidente da Inquisição na Espanha e sobre ele estava o poder de destituir e condenar. Ao inquisidor cabia a função de investigador (inquisitor) e juiz, pois era ele quem investigava, julgava e condenava os casos de heresia. No livro Manual dos Inquisidores, tem-se um relato de como deveria ser o inquisidor, além de admoestações contra suas punições:
O inquisidor deve ser honesto no seu trabalho, de uma prudência extrema, de uma firmeza perseverante, de uma erudição católica perfeita e cheia de virtudes. Todos os inquisidores devem ser doutores em Teologia, Direito Canônico e Direito Civil. [...] Lembremos que é sempre melhor evitar punir os inquisidores, porque, com a punição, é a instituição inquisitorial que é atingida. Logo ela não será mais respeitada e temida pela plebe ignara (populo stulto) [5]
Em relação ao inquisidor geral Tomás de Torquemada, Thomas Hope [6] o descreve desta maneira como fanático, não tanto pela fé católica como pela unidade da Espanha. Era excessivamente piedoso, mas o seu ascetismo estava mais consagrado à sua própria glória do que para a glória de Deus. Era orgulhoso, idólatra de si mesmo. Torquemada mostrou profundo zelo em relação à Inquisição, recusando o bispado de Sevilha por conta de seu cargo como inquisidor. Ele, como dominicano, jamais abandonou o seu austero traje em favor do esplendor de outras roupas. Torquemada guardou para si consideráveis somas de riquezas confiscadas e morava em palácios extravagantes. Quando viajava, era acompanhado de cinqüenta guardas montados e duzentos e cinqüenta homens armados.
Em outros aspectos, era visivelmente um homem inteligente, um dos supremos maquiavéis da época, dotado de profunda intuição psicológica e da aptidão de um insidioso estadista. Em Os Irmãos Karamazovi, não se dá ao grande inquisidor qualquer nome pessoal. Pouca dúvida pode haver, porém, de que Dostoiévski pensou em Torquemada como protótipo. E, na verdade, a descrição que faz do grande inquisidor é na certa um retrato tão preciso de Torquemada quanto o feito por qualquer historiador ou biógrafo. Certamente não é difícil imaginar Torquemada mandando conscientemente Jesus para a estaca a fim de proteger a Inquisição e a Igreja [7]
O poder e a influência de Torquemada rivalizaram com os poderes monárquicos de Fernando e Isabel, monarcas de sua época. Torquemada morreu em 1498.
Durante a Inquisição Medieval, o Tribunal do Santo Ofício da Inquisição utilizou métodos próprios para a punição dos acusados de heresia. As acusações eram classificadas em crimes contra a fé e crimes contra a moral e os costumes. Os crimes contra a fé eram: judaísmo, protestantismo, luteranismo, deísmo, libertinismo, maometismo, blasfêmias, desacatos, crítica aos dogmas da Igreja, invocação do demônio etc. Os crimes contra a moral e os costumes eram: bigamia, sodomia, feitiçarias, adivinhações etc. Os crimes contra a fé eram considerados os mais graves. Os acusados deste tipo tinham quase sempre seus bens confiscados e eram condenados à morte, enquanto que os infratores da moral e dos costumes recebiam sentenças mais leves. Contra os hereges relapsos, aqueles que caíram no erro da heresia mais de uma vez, a punição era a morte na fogueira. A severidade desta sentença era atribuída ao fato da pessoa ter sido “perdoada” e ter incorrido no mesmo erro. Os seguidores e protetores de hereges também eram punidos. O inquisidor podia perseguir tanto o rei quanto o leigo, mas deveria tomar cuidado na perseguição de pessoas nobres. O inquisidor só não podia proceder contra o papa e os bispos.
Quando o inquisidor chegava a uma determinada cidade para investigar os possíveis casos de heresia era recebido pelas autoridades civis do local que o apoiavam através de juramento. Caso contrário, poderia haver excomunhão e interdito da região. A abertura pública e solene dos trabalhos da Inquisição iniciava-se com o sermão geral do inquisidor que convocava e ameaçava a todos os presentes a denunciarem os suspeitos de heresia. Para aqueles que desobedeciam as ordens do inquisidor a pena era a excomunhão. Por isso, todos os que negavam a delação de um herege eram tidos como excomungados. Era prometidas indulgências para todos os que colaborassem com a prática inquisitorial. O escrivão ganhava três anos de indulgência, o povo ganhava quarenta dias. Após a promessa das indulgências, o inquisidor anunciava a “época da graça” ou “época do perdão”, período de um mês após a data do sermão para que os hereges se apresentassem ao inquisidor como culpados
Durante esse mês de graças, teremos muita misericórdia com aqueles que venham a nós espontaneamente para confessar suas culpas e pedir perdão. Mas quem, em vez de se apresentar espontaneamente, esperar que seja acusado, denunciado, citado ou capturado, ou deixar passar a época do perdão, não vai se beneficiar de tanta misericórdia! Suplico, portanto, a todos que se apresentem espontaneamente, durante a época do perdão![8]
A base para a acusação era a denúncia feita por qualquer pessoa ou através de cartas anônimas. Os acusados não sabiam quem os denunciavam. O indivíduo acusado tinha seus bens confiscados pelo juiz do fisco. Com o confisco dos bens, a família do acusado passava a viver na miséria sujeita à caridade dos vizinhos. Os descendentes dos hereges eram considerados infames por várias gerações e impedidos de participarem na sociedade. Todo réu para se salvar tinha que se confessar e se declarar culpado. Além disso, era obrigado a acusar de heresia as pessoas próximas a ele como os pais, irmãos/ãs, filhos/as etc., caso contrário, era considerado mentiroso por omitir culpados. Quanto maior o número de pessoas acusadas, melhor seria para os inquisidores, pois os denunciados seriam os futuros réus e os confiscos aumentariam. Recomendava-se que o inquisidor usasse de malícia para com os acusados, no momento do interrogatório. O Manual dos Inquisidores cita os dez truques dos hereges para responder sem confessar e os dez truques que os inquisidores deveriam utilizar para neutralizar os truques dos hereges[9].
Para os presos, recomendava-se que fossem mantidos na masmorra, sozinhos, por no mínimo seis meses, podendo chegar a um ano ou mais. De vez em quando, o acusado podia receber visitas da esposa e dos filhos. Também podia receber a visita de teólogos, no intuito de persuadir o acusado. O inquisidor visitava os presos pelo menos duas vezes por mês. Ele precisava tomar cuidado no momento da visita para falar apenas sobre a acusação e o processo. A prisão servia como detenção até a determinação da sentença ou como local para o próprio cumprimento da pena.
A prática da tortura foi um método muito utilizado pela Inquisição. A tortura passou a ser utilizada, a partir de 1252, com a autorização do papa Inocêncio IV. Ela foi utilizada tanto na Inquisição Medieval quanto na Inquisição Espanhola. Não havia restrição de idade para a aplicação dos açoites, tanto jovens quanto idosos podiam ser submetidos a punições físicas. “Não se torturam crianças, velhos e mulheres grávidas. Quanto à idade, os menores de vinte e cinco anos serão torturados, mas não as crianças de menos de quatorze anos. Elas serão aterrorizadas e chicoteadas, mas não torturadas. O mesmo para os velhos” [10].
Antes de ser torturado, o réu era examinado por um médico que avaliava quanto ele poderia suportar, e assinava um papel onde confirmava que, caso ficasse com os membros quebrados ou aleijado, a culpa não era dos inquisidores, mas dele próprio, por ter-se mantido pertinaz e escondido o nome de cúmplices. Muitos morreram durante a tortura [11].
Geralmente o torturador era um carrasco secular público. O inquisidor participava da tortura interrogando o acusado, mas não o açoitava. O escrivão e o secretário do inquisidor anotavam as respostas obtidas durante a tortura e observavam as reações do réu com muita atenção. A recomendação dizia que não se devia torturar nos casos de delitos manifestos, mas somente nos casos dos delitos ocultos que eram mais difíceis de comprovar.
Haught comenta que os inquisidores não podiam executar ninguém, por isso entregavam os acusados às autoridades civis e seculares para serem punidas. Geralmente, a punição era a morte na fogueira. Desta forma, era preservada a “santidade” da Igreja, que não poderia derramar sangue. Foi um estatuto papal de 1231 que determinou que a fogueira fosse a punição padrão dos hereges [12].
Os autos-de-fé podiam ser público, particular ou especial. Os particulares eram reservados para casos mais simples, os especiais julgavam as pessoas da alta nobreza. Os atos públicos tinham caráter festivo e de ostentação, neles eram julgados os crimes mais graves e geralmente, eram realizados uma vez por ano. Nesta festa religiosa participavam os reis com toda sua corte e as mulheres se apresentavam bem trajadas e cheias de jóias.
Durante os autos-de-fé, os réus ouviam suas sentenças. O auto tinha início com a procissão seguida da missa. O sermão cumpria o papel central por ditar as acusações contra os hereges e legitimar a inquisição. Por causa dos sermões, a população presente sentia ódio e aversão aos judeus cristãos novos. A celebração era pomposa. A participação do povo era comprada, pois quem assistisse aos autos-de-fé ganhava quarenta dias de indulgência. O povo era avisado um mês antes da data da celebração. O tablado com o emblema da Inquisição era montado em alguma praça da cidade e na noite anterior ao auto-de-fé eram feitas procissões nas ruas da cidade até o local. Os réus passavam a véspera na capela da prisão do Santo Ofício e na manhã seguinte eram vestidos com os sambenitos, roupas que os distinguiam dos demais e os apontavam como hereges. Para a ideologia da inquisição, a exposição do herege tinha papel pedagógico e exemplar: “É claro que ensinar e amedrontar o povo com a proclamação das sentenças, a imposição de sambenitos, etc., é uma boa ação. [...] Nada mais glorioso para a santa fé do que humilhar publicamente a heresia!” [13]
Depois de vestidos, os réus caminhavam numa fila única, através da praça, numa longa procissão. Os réus tinham a opção de abjurar e sofrer as punições desta escolha ou de não abjurar e serem entregues ao braço secular para morrerem na fogueira. Aqueles que se arrependessem no último instante de vida tinham direito a uma “morte piedosa”, a morte por estrangulamento, dessa forma não sentiriam dor e morreriam mais rapidamente. O número de penitentes por auto-de-fé era de até mil e quinhentos.
Desde o estabelecimento do Tribunal na Espanha, em 1480, até 1808, foram queimados 31.912 hereges (em efígie [simbolicamente] 17.659). Foram penitenciadas 291.450 pessoas, num total de 341.021. De 1780 até 1820 houve cerca de 5.000 processados [14]
A Inquisição, tanto a Medieval quanto a Espanhola, só conseguiu persistir por séculos devido a sua união com o poder político e também porque sua ideologia religiosa respondia às necessidades do povo oprimido da época. Hoje, o Santo Ofício chama-se Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé e todos aqueles/as que questionam de alguma maneira os dogmas estabelecidos pela Igreja Romana são silenciados e ou acusados/as de heresia.


[1]  NOVINSKY, Anita Waingort. A Inquisição, 3ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 10.
[2] BAIGENT, Michael; LEIGH, Richard. A Inquisição. Rio de Janeiro: Imago, 2001. p. 81.
[3] NOVINSKY, 1985, p. 31.
[4] Idem, ibidem, p. 31.                     
[5] EYMERICH, Nicolau Frei. Manual dos Inquisidores. Tradução de Maria José Lopes da Silva, Prefácio de Leonardo Boff. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1993. p.185.
[6] HOPE, Thomas. Torquemada. Buenos Aires: Losada, 1944.
[7] BAIGENT; LEIGH, 2001, p. 84.
[8] EYMERICH, 1993, p. 101.
[9] EYMERICH, 1993 , p. 119-123
[10] NOVINSKY, 1985, p.212.
[11] Idem, ibidem, p. 61.
[12]   Cf. HAUGHT, James A. Perseguições religiosas: a história do fanatismo e dos crimes religiosos. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003. p. 62.          
[13]    EYMERICH, 1993, p. 166.
[14]    NOVINSKY, 1985, p. 70.

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