segunda-feira, 29 de março de 2010

Pequena História da Língua Hebraica


Pequena História da Língua Hebraica
1 – Um Panorama Geral
Chaim Rabin

Por cerca de mil e trezentos anos, desde a conquista da Palestina, até após a guerra de Bar-Kohba, os judeus falaram o hebraico. Passaram então a falar outras línguas por mais de dezesseis séculos, até que o hebraico voltou a ser novamente falado na Palestina, há cerca de noventa anos.
As causas da interrupção da utilização do hebraico como língua falada devem ser encontradas no fato de que, a partir do Exílio da Babilônia, grande parte do povo judeu falava outras línguas. Os judeus da Babilônia falavam o aramaico, e os do Egito falavam o grego durante o período helenístico. Mesmo na Palestina havia regiões, como a Galiléia e a planície costeira, em que os judeus falavam o aramaico e o grego. O hebraico falado prevaleceu somente na Judéia e em algumas regiões um pouco mais ao sul, próximas à cidade de Hebron. Este hebraico estava longe de ser a linguagem da Bíblia. Era a linguagem que atualmente denominamos de hebraico mishnaico ou a língua dos Sábios. Quando, nas guerras de 66-70 (destruição de Jerusalém) e de Bar-Kohba (131-134), a Judéia foi arrasada e o remanescente dos habitantes judeus, inclusive os sábios, foi se estabelecer na planície costeira e na Galiléia, o som do hebraico falado cessou e os imigrantes foram aos po ucos adotando o aramaico.
Os judeus, entretanto, através de todos os períodos do Exílio (70 E.C. a 1948), nunca deixaram de ler e escrever hebraico. Uma vasta literatura foi se acumulando nesses períodos, incluindo livros de sabedoria religiosa, filosofia, ciência, assim como de leve entretenimento, poesia religiosa e secular, peças teatrais, livros de viagens e obras históricas. Houve mesmo países nos quais os judeus mantiveram a tradição de escrever suas cartas e documentos particulares em hebraico. Os judeus da Inglaterra medieval (séc. XII e XIII), por exemplo, registravam em hebraico até mesmo os títulos referentes a empréstimos feitos a não judeus.
Muitos falavam o hebraico esporadicamente. Há relatos sobre judeus de países diferentes, que falavam hebraico quando se encontravam e não dominavam, em comum, nenhuma outra língua. Os judeus falavam hebraico nas feiras para não serem entendidos por seus clientes não judeus. Aos sábados, os homens pios falavam somente hebraico. Com tudo isso ninguém pensou em adotar o hebraico na linguagem cotidiana. Os judeus são o Povo do Livro; que importância poderia ter a conversação diária diante da língua do Livro?
Naquela época, na Idade Média, a língua ainda não era um atributo de nacionalidade, pois não existiam ainda nações na concepção atual do termo. Muito tempo depois de os povos da Europa terem iniciado suas lutas pela independência nacional nos assuntos públicos e governamentais, os judeus ainda não se consideravam uma nação como outras. Tinham começado a produzir uma literatura ocidentalizada moderna em hebraico, mas não aspiravam a funções oficiais para a Língua de Eber, e tampouco lhe haviam definido um lugar em sua vida, além dos limites religiosos e literários.
No século XIX, o hebraico só era falado em Jerusalém e, em escala menor, no resto da Palestina. Ali encontravam-se judeus de diversas comunidades: os aschkenazitas de fala iídiche, os sefarditas de fala árabe ou espanhola, e, como os judeus da Idade Média, falavam hebraico entre si, pois esta era a única língua mais ou menos compreensível para todos. Visto que os sefarditas eram comerciantes e artesãos, os aschkenazitas acabaram adotando a pronúncia sefardita quando falavam o hebraico nas transações comerciais. Ninguém pensava nela como língua nacional.
Em 1881, chegou à Palestina um jovem judeu lituano, que adotara o nome hebraico de Eliezer Ben-Yehuda. Ainda na Europa, tinha concebido a idéia da nacionalidade judaica, e o hebraico como sua língua oficial. Em 1879, publicou na revista trimestral Haschahar, de Viena, um artigo em hebraico denominado Uma Questão Candente. Ali divulgava suas idéias revolucionárias. Ainda em Paris começou a falar em hebraico. Encontrou judeus da Palestina e com eles aprendeu a pronúncia sefardita. Ao chegar à Palestina procurou falar hebraico com todas as pessoas que encontrava, descobrindo que sabiam responder-lhe nesse língua.
Imediatamente após sua chegada, começou a proclamar dois novos princípios: o hebraico devia ser falado em casa, em família, e devia tornar-se a língua oficial nas escolas. Ele próprio colocou ambos em prática: ensinou durante um período, em hebraico, na escola da Alliance Israélite Universelle, de Jerusalém, e utilizou em casa somente o hebraico. Quando nasceu seu primogênito, empenhou-se em dar à criança o hebraico como sua primeira língua. Itamar-Ben-Avi, como foi chamado mais tarde o filho, foi assim a primeira criança a Ter o hebraico como língua materna.

2 – O Desenvolvimento do Hebraico
Chaim Rabin

Supõe-se, em geral, que o hebraico morreu após a destruição do Segundo Templo (ano 70 E.C.), passando a servir então, principalmente, como língua das orações; acredita-se também que, embora alguns livros tenham sido depois escritos em hebraico, a língua não sofreu acréscimos e permaneceu estagnada. Este ponto de visto é falho em vários aspectos. Primeiramente, apesar de ser verdadeiro que o hebraico deixou de ser falado, a atividade literária no período da diáspora foi imensa. O número de livros escritos neste período (70 E.C. a 1948) atinge dezena de milhares, incluindo alguns volumes bastante alentados, e cada livro contribuiu com algo para o desenvolvimento da língua, ao tratar de diferentes temas e problemas. Em segundo lugar, é certamente errôneo supor que somente línguas faladas se desenvolvem e crescem. Ao contrário, mesmo nas línguas vivas o enriquecimento do vocabulário se dá, principalmente, na linguagem escrita. No ca so do hebraico, dezenas de milhares de palavras foram criadas, no período da diáspora, para designar idéias, instituições e invenções surgidas naquele decurso de tempo. Além disto, muitas palavras novas foram criadas, sem qualquer razão externa aparente, já que, em todos os idiomas, palavras deixam de ser usadas e são substituídas por outras. O vocabulário criado no período da diáspora não foi até agora totalmente coletado, pois está disperso em grande número de livros, muitos dos quais existem só em manuscritos; somente o Dicionário Histórico, que está sendo atualmente preparado pela Academia da Língua Hebraica, poderá incluir todas essas riquezas.
Um dicionário do hebraico contemporâneo contém material formado de várias camadas lingüísticas superpostas. Em suas páginas encontram-se palavras com mais de três mil anos, algumas criadas há apenas mil anos, e outras que penetraram na língua bem recentemente. Aparecem todas lado a lado, e em conjunto formam uma unidade: o vocabulário em uso em nossa geração. O atual falante hebraico não está consciente de que estas palavras são de diferentes períodos. Para ele são todas a mesma coisa, ou seja, todas são palavras hebraicas. No conjunto, não é possível reconhecer pela aparência externa se a palavra é antiga ou recente. Somente o estudo de livros escritos em diferentes períodos revelará quando determinado vocábulo começou a Ter curso na língua. Há alguns dicionários que indicam, até certo ponto, a época em que uma palavra entrou em uso. Estes são o grande Thesaurus de Ben Yehuda, os dicionários de Y.Gur, de Y.Kenaani e a Segunda edição de A.Even-Shoschan .
Nas cartas de Tell-El-Amarna, escritas na língua babilônica, antes da conquista israelita da Palestina, que contêm algumas palavras da língua local, aprendemos que, no século XIV a.C., tais palavras já tinham o mesmo significado de hoje; navio, verão, pó, gracioso, muralha, gaiola, tijolo, falta, portão, campo, agente comercial, cavalo, imposto e mais cerca de quinze outras palavras, que eram correntes na fala da Palestina. Esta são, portanto, as primeiras palavras hebraicas atestadas em documento escrito. Subentende-se naturalmente, que àquela época eram correntes também milhares de outras palavras dentre as quais, algumas encontradas na Bíblia, mas não mencionadas nas cartas de Tell-El-Amarna, por falta de oportunidade.
O mesmo se aplica à própria Bíblia. A Bíblia emprega cerca de 8.000 palavras hebraicas diferentes (das quais 2.000 aparecem apenas uma vez), mas certamente este não era o vocabulário completo disponível para o falante hebraico no período bíblico. Esse vocabulário atingia, sem dúvida, 30.000 ou mais vocábulos, mas os autores dos vários livros da Bíblia não tinham motivos para usar a maioria deles. A Bíblia trata de um número restrito de temas e não é uma enciclopédia. O número de palavras diferentes nas partes hebraicas na Mischná, Tosefta, nos Talmudes, e nos Midraschim, que denominamos em conjunto Hebraico Mischnaico, é muito maior, porque a variedade de temas é maior. É bem viável que muitas das palavras existentes no Hebraico Mischnaico, eram usadas no período bíblico, mas não foram empregadas na Bíblia. Uma apalavra encontrada nas cartas de Tell-El-Amarna, nos dá uma prova disso: é masch-hezet (mó).
Apesar de numericamente pobre, o vocabulário contido na literatura bíblica é de especial importância para o hebraico atual. Como é sobejamente sabido, nem todas as palavras de uma língua são usadas com igual freqüência. Algumas são constantemente empregadas como homem, coisa, casa, fazer, falar; outras são usadas em ocasiões extremamente raras, embora a média dos que usam o hebraico como língua nativa esteja familiarizada com seu significado. A pesquisa científica demonstrou que, em qualquer língua, 1.000 palavras compõem cerca de 85% de todo o material de um texto médio. Entre essas 1.000 palavras mais freqüentes em hebraico, 800 são da época bíblica. A lista dos 1.000 vocábulos mais usados, como ensinam os Ulpanim também inclui cerca de 800 palavras hebraicas bíblicas. Assim, a importância do vocabulário bíblico é desproporcional à sua participação numérica entre os 60.000 ou mais vocábulos que compõem o hebraico atual.
A análise de textos de jornal demonstrou que 60 a 70% das palavras usadas nos noticiários comuns são bíblicos, enquanto cerca de 20% são encontradas somente na literatura mischnaica, e a pequena percentagem restante é composta de termos de origem medieval e invenções modernas. Uma recente pesquisa numa mostragem de 200.000 palavras correntes, selecionadas ao acaso em jornais e periódicos, demonstra que entre as palavras que ocorrem mais de cinco vezes ( o que compõe quase metade do vocabulário inteiro encontrado em tais textos), as palavras bíblicas formam 61% das ocorrências. A diferença é devida à inclusão de artigos de fundo, comentários, etc., onde palavras recentemente criadas ocorrem em maior número.
Cerca de 14.000 palavras do dicionário hebraico provêm da linguagem mischnaica. Isto não constitui o número total de palavras usadas naquela época, pois o hebraico mischnaico tem mais de 6.000 palavras em comum com o hebraico bíblico. Assim, as fontes do hebraico mischnaico (Mischná, Tossefta, partes hebraicas do Talmude e Midraschim) usam um vocabulário total de cerca de 20.000 palavras.
A edição recente do dicionário de A.Even-Schoschan, de acordo com a estimativa de seu autor, inclui 6.500 palavras de fontes medievais. Estas derivam principalmente do Piyut (poesia litúrgica), dos escritos judaicos medievais da Alemanha e França (principalmente dos comentários de Raschi), e das traduções feitas no sul da França nos séculos XII a XIV. Estas não são obviamente todas as palavras que foram criadas durante o longo período que decorreu entre o Talmude e o renascimento da língua hebraica. Este material está apenas parcialmente registrado.
Algumas milhares de palavras, de uso comum atualmente, foram tomados do aramaico talmúdico. A aramaico difere totalmente do hebraico na fonética, e na gramática mas o constante trato dos judeus com o Talmude Babilônico, e, mais tarde também com o Zohar, obra mística escrita em aramaico, levou à absorção de muitas palavras do aramaico, já na Idade Média, com pequenas alterações formais, para lhes dar aparência de palavras hebraicas. Os estudiosos responsáveis pela ampliação do vocabulário técnico do hebraico, nos tempos modernos, têm continuado este processo e palavras desta origem têm passado para o hebraico constantemente.
O próprio Even Schoschan apresenta perto de 15.000 palavras criadas desde o renascimento da língua hebraica. Uma vez que este dicionário não contém termos puramente técnicos, das ciências naturais e da tecnologia, o número de palavras adicionadas nestes noventa anos é provavelmente muito maior, embora tenhamos que deduzir uma certa porcentagem de palavras que não obtiveram aceitação.
O hebraico, como outras línguas, cresceu por camadas, sendo que cada uma corresponde a um período da língua, e podemos encontrar fortes traços de todas elas na nossa atual linguagem falada e escrita. Não apenas o vocabulário foi acrescido, mas cada período também contribuiu com sua parcela de formas gramaticais e de estruturas sintáticas. Algumas das inovações dos vários períodos caíram em desuso, mas algumas das palavras e das características gramaticais que desapareceram foram subseqüentemente recuperadas, e algumas estão sendo revividas atualmente. No hebraico moderno, todos estes elementos estão sendo combinados numa nova unidade orgânica. O falante do hebraico em Israel não está consciente da diferente idade das palavras que usa, assim como poucos falantes do inglês têm consciência da origem histórica das palavras de sua língua e da época em que penetraram no inglês.
O interesse em esclarecer estas origens é histórico e intelectual e não influi sobre o modo como estas palavras e estruturas são usadas. Em Israel há autores de assuntos lingüísticos que acreditam que a origem de uma palavra deve influir em matéria de estilo, e, devido ao intenso estudo da Bíblia, e em alguns círculos, da Literatura Rabínica, a consciência da origem das palavras torna-se mais viva em israel do que na maioria dos outros países.

Fonte:
RABIN, Chaim. Pequena história da língua hebraica.1.ed. Trad. Rifka Berezin. São Paulo,
Summus, /1973/. p.11-20.

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